
Um causo da Fronteira
Dois gaudérios discutiram forte, em uma estância dos arredores de Bagé, logo despôs de desencilharem as montarias, deixando os pelegos e os aperos dependurados na cerca.
Lá pelas tantas, um deles disse um desaforo e vira as costas, em direção ao galpão, com as rédeas na mão direita.
Nisso, o ôtro, furioso, desafora a mãe dele.
Era demás.
Se vira e senta as rédeas na cara do desaforento, que caiu se estrebuchando no chão.
O freio tinha batido bem na quina da testa.
Morreu três dias despôs, no hospital de Bagé.
Passa o tempo, na agonia do julgamento.
No dia do júri, o pobre gaúcho, algemado, não entende nada o que diz a Promotora, uma pinguancha muy ajeitada e jeitosa, que vira tigra na tribuna do tal de júri.
Uma morena fogosa e furiosa, que grita, apontando o dedo em riste pro gaúcho:
- Este homem matou a vítima de forma preterdolosa...
- Pelo jeito, não escapo - pensa o gaúcho.
Duas horas ouvindo a Tigra, morena de toda a crina, chamando ele de bandido, de dedo em riste.
E, naquela arenga, volta e meia dizia, de novo, a Tigra: "de forma preterdolosa..."
E o gaúcho pensava: "Deste jeito, o tal de júri vai me mandá pro quinto dos inferno..."
Bueno.
Duas horas despôs, cansô a Tigra.
Sentô, tomô um copo d'água, e finalmente deixô o adevogado do pobre gaúcho falá.
Mas continuô furiosa.
Era só olhá o pescoço da Tigra, pra vê que continuava furiosa.
O adevogado do gaúcho inicia cumprimentando todo mundo, até a Tigra.
- Barbaridade, ela me chamô de bandido a tarde intêra e ele ainda cumprimenta a Tigra - pensa, desolado, o pobre gaúcho, balançando a cabeça.
Depois de uns dez minuto de salamaleque e volteio, o adevogado pega as rédeas pra mostrá como se sucedeu o crime.
Nisso, a Tigra se empolga e faz um aparte atrevido:
- Mas, Doutor, não vai me dizer que o senhor vai imitar até o relincho do cavalo...
O adevogado, entonces, disse só uma frase.
Mas, com ela, absolveu o gaúcho:
- Não. Hoje eu vô é encilhá uma potranca...
O "causo" do diplomata...
Dois Irmãos.
1990, por aí.
8 e meia da manhã.
Segunda-feira.
Entra o oficial escrevente.
Com o sotaque carregado de alemão, diz:
- Dotôrrr..., o home não querrrr entrárrrr... Diz que tem imunidade diplomática. Axxo que é, posssudo dessse de xeijto, no mínimo, deputado federrral... E a Frau disssse que non entrra sem ele entrrrá...
Pensei: comecei bem a semana. Imagina o que me espera.
Ou, como diria o o oficial escrevente prussiano (e surdo, pra complicá): o que vai piorrrá.... de segunda até sexta....
Disse: diz pra ele que não existe imunidade diplomática em separação judicial. Quando ele estava saindo da sala de audiências para explicar e apregoar de novo, pra simplificá, repeti: em separrração judicial non essisste....
Bueno.
Entram os dois.
O posudo (possssudo, segundo o oficial escrevente prussiano) e a Frau.
- Bom dia.
- Bom dia, responderam os dois, embora de cara amarrada.
Perguntei, pra descontrair:
- O senhor é deputado federal?
- Non, sô verreador em Son Valentim...
Me segurei pra não dá risada e disse:
- Ah, bom. Não existe imunidade diplomática nesse caso.
Então, meu amigo, ele me dá uma resposta que quase derrrrruba a Frau:
- Bom, dotôrrr.... se non exissste imunidade diplomática nesste caso, o povo de Son Valentim querrr saberrr quem foi que pulou a janela do quarrrto pelado quando eu entrrrrei no larrrr conjugal.
Meu amigo, foi uma luita.
Eu, o advogado da Frau e até o oficial escrevente prussiano (que servia de tradutorrrr), tentanto botá na cabeça do vivente diplomata que o povo de Son Valentim non querrria sabê quem tinha pulado a janela do quarrrto conjugal quando ele entrrrou na casa dele e da Frau.
Ele insistia.
- O povo de Son Valentim tem o dirreito de sabê.
Bueno.
Então, eu disse:
- O senhorrr já pensou que, se o tal vivente se candidatá em Son Valentim, pode levarrr a Frau e também os seus votos....?
O diplomata pensou dois ou três segundos.
Olhou pra Frau e disse:
- A Frau, esssssa aí, ele pode levá.... os meu voto, não.
E assinou, na hora, a separação amigável.
"O causo do namoro do gaúcho..."
Anos 70.
Numa fria madrugada de sábado em São Borja, um pobre gaudério foi preso em flagrante.
Seu crime: "furto" de uma égua, dizia o inquérito policial.
Cadeia pro gaudério.
Na segunda, o juiz recebe o flagrante (parece que, na época, o flagrante era recebido só na segunda; me corrijam os mais velhos).
Fica com pena do gaudério. Concede a liberdade provisória, chama um advogado conhecido dele e diz:
- Acha uma solução pro pobre gaudério.
O advogado (o Flores, amigo de todos nós, hoje juiz aposentado), diz pro gaúcho:
- Só tem uma solução, vivente. Diz que tu tava "meio apertado" e por isso te "entreverô" com a égua.
O gaúcho não teve dúvida:
- Isso, não, dotôr. Isso, não.
O Flores, então, diz:
- Tu não vai me dizê que tu nunca "barranqueou" uma égua...
O gaúcho, então, responde:
- Dotôr, tu mundo já fez isso. Garanto que até o senhor... Mas isso ninguém admite.
O Flores deu uma risada, não disse nem que sim, nem que não, e mudou de assunto.
- Olha, vivente, ou tu diz que tava "entreverado" com a égua, ou é cadeia. Tu escolhe.
O pobre gaúcho ainda resmunga:
- Mas aquela égua baia matunguenta... que barbaridade.... Como é que vou dizê uma côsa dessas.... Não tem ôtro jeito, dotôr?
- Não, disse o Flores.
- Bueno, se não tem ôtro jeito... Mas o juiz não vai vê a foto da égua?
- Não, fica tranquilo, vivente. No inquérito não aparece a foto da égua. Todo mundo vai achá que é uma potranca lindaça, não uma égua matunguenta.
- O senhor me garante?
- Te garanto, vivente. E te garanto que aí tu tá absolvido.
Como o juiz previa, o Promotor denuncia e queria porque queria cadeia pro gaúcho.
No dia do interrogatório, o juiz pergunta:
- Então, seu Emerenciano, o que que houve naquela madrugada?
O gaúcho olha pro juiz e despôs pra secretária. Fica sem jeito, o coitado. Não tinha coragem de dizê uma barbaridade daquelas na frente de uma mulher. Então, olha pro Flores, que só faz um sinal, como quem diz:
- Desembucha, vivente.
Muito sem jeito, o gaúcho começa.
- Olha, seu juiz.... eu não sei como contá... é que eu tava meio apertado.... e sem dinheiro pra aparecê no chinaredo... entonces.... o senhor entende... o senhor é home... todo mundo já fez isso...
O juiz viu que era hora de interromper o gaúdério e diz:
- O senhor quer dizer que tava de namoro com a égua?
O gaudério olha pra secretária, baixa a cabeça e muito sem jeito, diz:
- Pôs parece que foi isso...
O juiz trata de encerrar o interrogatório, antes que o gaúcho repita: "todo mundo já fez isso".
E absolve o gaudério citando versos de amor de Shakespeare.
Obs: matunguenta, pra quem é da cidade e não sabe, é "velha", em linguagem gaudéria.
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